As crianças de todos os tempos

Queridas famílias e equipe do Jardim de Infância Tia Lucy

Segue um texto para reflexão, muito inspirador e importante nos tempos que estamos vivendo.

 

Por Adriana Friedmann

Gostaria de pedir licença a vocês, crianças, como porta-voz dos adultos, para nos permitirem adentrar e conhecer um pouquinho dos seus universos.

A maior parte de nós esqueceu que um dia já foi criança. Esqueceu o quanto adorava brincar, esconder-se, compartilhar e guardar segredo, brincar de super-herói, de casinha, de médico, de pega-pega, de empinar pipa; enfim, de ficar à toa, rabiscar o mundo, sair disparados correndo ou dançando; o quanto cada um de nós curtia pintar, desenhar, sonhar. Aprendemos muito com nossos pais e avós e, mais tarde, com nossos vizinhos, primos e amigos da escola. Sentíamos receio de não sermos aceitos, de sermos rejeitados pela nossa turma, de levar bronca de nossos pais e professores. Detestávamos quando éramos pressionados ou quando descobriam nossos segredos e planos – e, pior, quando acabavam com eles. Claro que, como qualquer criança sempre quisemos ser livres e fazer aquilo de que gostávamos. Talvez, as maiores lições aprendemos com a dor dos castigos, com as frustrações e rejeições.

Não sei se vocês sabem que, antigamente, as crianças tinham poucos direitos e muitas obrigações, raramente eram ouvidas ou podiam dar sua opinião, ou dizer o que sentiam ou o que queriam. Quiçá, os que mais nos escutavam – e continuam a escutar as crianças – eram nossos avós.

Por outro lado, crianças tinham muito tempo, brincavam e conviviam com crianças de idades diferentes, tinham a rua e muitos espaços de natureza sempre perto e disponíveis para brincar. Hoje parece que o relógio corre mais depressa e que o dia nunca é suficiente para vocês, crianças, terem brecha para brincar.

Hoje os tempos e corpos estão “tomados” pelos celulares, vídeo games e conexões nas redes sociais.

Hoje, o mercado lhes oferece muitas promessas de que os brinquedos e outros itens de consumo vão  lhes levar “alegria” ou “felicidade”, sendo que o que de verdade vocês almejam – mesmo que não tenham essa consciência – é viver plenamente o seu tempo de infância, descobrir e aventurar-se em diversas experiências e, com seus corpos e suas essências, conhecer o mundo, as pessoas e os territórios à sua volta.

Devido a todas essas percepções de como a infância costumava ser, nem faz tanto tempo atrás – aqui no Brasil e mundo afora -, por percebermos como a infância é hoje; e pela oportunidade de muitos pesquisadores, ativistas, educadores e profissionais das mais diversas áreas de conhecimento estarem contribuindo com  muitas novas descobertas, evidências e experiências sobre as realidades e universos infantis. Estamos todos aprendendo o quanto é importante escutar vocês e dar espaço e tempo para que possam se expressar, brincar, conviver, descobrir e viver infâncias plenas.

Temos observado que hoje o tempo livre de vocês, crianças, está tomado por tantas atividades!  A pressão é muito grande por parte do mundo dos adultos, que estão ansiosos para que vocês aprendam logo e muito sobre esse mundo!

Estão ansiosos para que vocês se preparem para o futuro e não percebem a importância do aqui e do agora, do momento de vida presente de cada um de vocês.

Temos evidenciado que, apesar de tantas conquistas e consciência da importância de garantir espaços amigáveis para vocês, os espaços da rua e da natureza são raros.

Mas muitos de nós adultos – pais, professores, cuidadores, gestores – estamos descobrindo que vocês possuem um repertório imenso de saberes, códigos, brincadeiras, narrativas e linguagens que nós desconhecemos.

Gostaria de perguntar a vocês, por meio desta carta – como aquelas que se costumava escrever quando existia papel de carta, envelope, caneta e lápis, e que eram mandadas pelo correio – se podemos ficar mais perto de vocês, conhecer e aprender suas brincadeiras, conversar sobre suas vidas, construir junto com vocês os sonhos das cidades que queremos, ler e tentar entender, junto com vocês, o que dizem seus desenhos e pinturas, o que vocês querem dizer quando cantam, quando dançam, quando rabiscam e falam sozinhas. Será que podemos aprender, através dos seus olhares, dos seus sentires e das suas vozes, quem vocês são de verdade?

Sabe, muitas vezes os adultos olham para vocês e é como se estivessem na frente de um espelho que faz com que eles se lembrem de que um dia também foram crianças e que tinham sonhos, tempo e muito para conquistar.

Mas vou contar um segredo: a bem da verdade, todos os adultos levam viva, dentro de si, a sua criança e um baú repleto de memórias.

E vocês nos evocam essas lembranças e a importância dessa fase da vida – a infância – cada vez que conseguimos nos conectar verdadeiramente com vocês.

Agora, queremos caminhar para oferecer a vocês mais tempo, espaços, ouvidos atentos, olhos de ver e nossa inteira presença para, com muito vagar, vocês nos guiarem pelos seus mundos e, a partir de suas vozes e expressões, nos darem a oportunidade de nos deixar levar por vocês para aprender o que cada uma tem a nos contar e a nos ensinar.

Nós, adultos, temos muitos saberes.

Mas vocês têm saberes que nós desconhecemos e tantos outros que esquecemos.

E com todos esses saberes infantis, queremos contribuir para poder melhorar nossas cidades, nosso dia a dia, nossos espaços e enriquecer a educação e a cultura da vida de toda sociedade.

Vamos juntos?

Então nos dão licença para olharmos pelas frestas das suas vidas e conhecer mais sobre vocês?

Com carinho, Regina